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Marcelo Knobel sobre Escola sem Partido: Todo processo que limite o professor é equivocado

Entrevista: Flávio Paradella

Texto: Leandro Las Casas e Henrique Bueno

A Universidade Estadual de Campinas é uma das maiores instituições de ensino e pesquisa do mundo. Mesmo com uma produção científica e de conhecimento alta, sofre com a crise econômica que assola o Brasil nos últimos anos. O físico Marcelo Knobel, 51, é o reitor que tem a missão de reestruturar as finanças da universidade. Argentino nascido em Buenos Aires, ele veio com a família ao Brasil fugindo da ditadura do país vizinho e encontrou abrigo justamente na Unicamp. A luta pela educação de qualidade e o enfrentamento às políticas que em sua visão destroem o conhecimento científico, são características do reitor, que não poupa críticas ao Governo Federal.

Reestruturação financeira e bem maior

Ao assumir a cadeira de reitor da Unicamp, o professor Marcelo Knobel tinha um sério problema em mãos: a saúde financeira da universidade estava deteriorada. “Era um déficit muito grande. A universidade gastava 17% a mais do que arrecadava. Tomamos diversas medidas internas, algumas bem impopulares e até controversas. Mas tivemos um bom resultado. Em dois anos reduzimos o déficit em 15%. O déficit atual da Unicamp é de apenas 2%”, afirma. Mesmos com a evolução dos débitos da universidade, se engana quem pensa que o reitor está satisfeito com o desempenho. “Estou um pouco chateado por não equilibrar totalmente as finanças da universidade. A economia não anda e ficamos um pouco sem ação”, diz.

A realidade da economia brasileira gerou muitas dúvidas na cabeça do professor de física que despontava para assumir a principal universidade pública do país. “Certamente pensei em deixar para depois. Mas havia a necessidade de encararmos esse desafio. Não era pelo dinheiro, não era pelo poder e muito menos por benefícios pessoais. Estamos lutando pelo bem maior, que é a maior responsabilidade de nossa vida”. Mesmo com o desgaste imputado pelo cargo, Marcelo Knobel disse não ter arrependimentos. “Estou sempre com preocupações, com cansaço. Mas ainda muito motivado. Tudo em defesa da universidade pública de qualidade”, afirma.

“Estamos ainda tentando chegar ao equilíbrio financeiro. Espero que até o final do mandato isso de fato aconteça”

Knobel tem ciência da importância do trabalho feito dentro da Unicamp e a prova disso é o envolvimento da comunidade universitária nas lutas contra os cortes nas bolsas de pesquisas. Em outubro de 2019, mais de 8 mil pessoas estiveram no prédio do Ciclo Básico para uma Assembleia Universitária Extraordinária que aconteceu para reforçar a importância das universidades públicas e alertar para os riscos dos ataques e cortes orçamentários recentes. “A mostra desse diálogo interno foi essa assembleia recente que a gente fez, que reuniu milhares de pessoas em defesa do ensino público de qualidade, lutando por uma causa maior, que é a educação, a ciência e tecnologia e mostrou a importância de estarmos unidos nessa luta contra o desmonte”.

A crise financeira atinge todas as universidades paulistas e algumas medidas extremas tiveram de ser tomadas. Na USP, por exemplo, foi adotado um programa de demissão voluntária. A Unicamp decidiu fazer diferente. “Tomamos outro caminho. Fizemos cortes de gratificações. A USP fez um programa de demissão voluntária e cerca de 3,5 mil pessoas aderiram. Seguramente eles conseguiram um equilíbrio financeiro, mas certamente perderam nas questões relacionadas à pesquisa, ao ensino”, acredita. “Nós não demitimos ninguém, não fizemos esse tipo de programa. Mas houve restrições para reposição de vagas de aposentados, houve corte de gratificações e reestruturação de setores. Agora a gente vê esse resultado com muito cuidado, porque a gente passa a sofrer pressão para a contratação de novos funcionários”, disse.

Programas de cotas e inclusão

A autonomia universitária ultrapassa a barreira do financeiro. Através dela, há a liberdade de cátedra, de gestão e para desenvolver cursos e linhas de pesquisas que a direção da universidade julga importante. “Temos uma responsabilidade orçamentária muito grande, mas também temos um compromisso sério com as questões acadêmicas”, afirma Knobel. Prova disso é o sistema de cotas da Unicamp, um dos mais inclusivos do Brasil. As conversas para as cotas étnico-raciais da universidade já aconteciam há algum tempo, mas a questão ganhou destaque a partir de uma greve em 2016. “Nesse momento, houve diversas discussões dentro da universidade sobre essa questão. Quando eu assumi, criamos logo de cara um grupo de trabalho para ampliar o debate. E o conceito foi aprovado rapidamente”.

A pluralidade na Unicamp é uma realidade. 35% dos estudantes são pretos ou pardos. Mais da metade dos alunos vieram de escola pública. Há ainda 70 indígenas de 23 diferentes etnias. Para o reitor da universidade, esta é uma perspectiva que está sendo copiada por outras instituições de ensino superior Brasil afora.

“Eu tenho plena convicção de que esses estudantes apresentam um desempenho melhor do que os alunos que ingressam na universidade pelo processo convencional”

Saúde, história e ditaduras

Argentino, nascido em Buenos Aires, Marcelo Knobel e sua família deixaram o país vizinho rumo ao Brasil, fugindo da ditadura local, no final da década de 60. “Meu pai chegou aqui em 1976, quando a Argentina teve um golpe militar. No Brasil também havia uma ditadura militar, mas o Zeferino Vaz (médico que foi responsável pela criação da Unicamp) havia conseguido criar em Campinas um ambiente bastante interessante para as pessoas poderem desenvolver seus trabalhos, com liberdade de cátedra e tudo o mais. Em princípio, meu pai veio para ficar por dois anos e acabou ficando”, relembra. Apesar de físico, a família Knobel, manteve uma relação íntima com a área de saúde da Unicamp. O pai, médico, buscou refúgio da ditadura argentina dentro dos portões da universidade. A mãe atuou como psicóloga do CAISM até a aposentadoria e a irmã, obstetra formada na Unicamp, também atuou no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher. “Isso é uma característica da Unicamp. São muitas as histórias de pais, mães e filhos conectados com a universidade. Em Barão Geraldo, por exemplo, quase todo mundo tem alguma conexão”, disse.

A ditadura argentina deixou muitas marcas na família Knobel. A principal delas foi a separação. Os pais, como já dito, vieram para o Brasil, com o casal de filhos mais jovens. Porém os irmãos adultos partiram rumo à Espanha. “Foi um momento delicado na família, mas acho que tivemos uma excelente acolhida na Unicamp, em Campinas, na escola em que a gente estudou. Foi um momento complexo, mas tudo se acertou”. Para o reitor a história da família é definidora. “Hoje a gente trabalha com ideias, com políticas que acabam olhando para tudo aquilo que a gente passou. Por exemplo, algo que a gente tem trabalhado bastante na Unicamp é direitos humanos, criamos também a cátedra de refugiados”.

Política nacional e cortes

“Todo e qualquer processo que tente limitar a possibilidade do professor despertar o pensamento crítico em sala de aula, como a Escola sem Partido, é equivocado”.

As novas políticas adotadas pelo Governo Federal e as discussões sobre a educação brasileira como um todo, que acontecem já há algum tempo, é são acompanhadas com muita atenção pelos professores de todo o país e obviamente pela direção da Unicamp. Existe um clima de apreensão muito grande entre a categoria com as sucessivas investidas de políticos em conteúdos programáticos de escolas e universidades. Um dos temas relacionados a isso que mais chama atenção no Brasil é o Escola sem Partido. “A ideia da universidade, da educação em geral, é realmente despertar o pensamento crítico. Despertar a capacidade de pensar das pessoas. É uma tarefa digna, difícil e fundamental. Todo e qualquer processo que tente limitar essa possibilidade do professor, como a Escola sem Partido, é equivocado”, resume.

Marcelo Knobel afirma que as pessoas têm que aprender a pensar por si mesmo, já que em nenhum momento foi feita algum tipo de defesa de doutrinação por parte de professores. “Hoje em dia nós estamos em um momento muito esquisito no nosso mundo. Precisamos repetir as vezes as verdades. A gente precisa ouvir os outros e ser éticos ao criticar as coisas. Hoje a gente não vê esse tipo de coisa, impulsionado pelo mau uso das redes sociais”, acredita.
Outra grande preocupação do setor está relacionada aos cortes nos investimentos da área de educação encabeçados pelo governo federal. As consequências disso ainda não podem ser apontadas. “Eu acho que os danos a gente ainda está para ver. Porque a ciência e tecnologia no país vem crescendo, ano após ano, nas últimas seis décadas. E ter um corte tão radical quanto o que a gente tem visto, é extremamente preocupante. Na Unicamp a gente já tem sentido isso nas bolsas de pesquisa, mas para o país, vai ser um desastre”, afirma.

“Nenhum país do mundo saiu de um crise sem ter investido em ciência, tecnologia e educação. Há exemplos disso. Olha a Alemanha pós guerra. A Coréia, o Japão. E não precisa de muito tempo, basta apenas algumas gerações”

O relacionamento da Unicamp com o Governo Federal não é dos mais próximos. Marcelo Knobel vê a questão com naturalidade. “Eu nunca estive com ninguém do atual governo, nem mesmo com o ministro da educação. É natural. Somos uma universidade estadual e temos um contato mais próximo com o governo paulista”, diz. Mas a nomeação do Governo Federal para a composição dos ministérios surpreendeu negativamente. “São pessoas desconhecidas do meio acadêmico e também do meio político. Foram escolhas complicadas e questionáveis. Temos uma preocupação muito grande com o que está acontecendo. Como eu avalio essa equipe? Como ruim. Muito, muito ruim”, afirma.
Para o reitor, não adianta fugir da realidade do país e o enfrentamento tem de ser feito na base do diálogo. “Nós temos diversidade e variados espectros de pensamentos. Fizemos a primeira assembleia geral da Unicamp. Uma manifestação legítima. A gente precisa se posicionar”, finaliza.

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