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“Diga-me com quem andas e eu te quem és pode ser substituída pela outra: diga-me onde estás e eu te direi quem és”. A frase do geógrafo brasileiro Milton Santos expressa o real significado de território. Para ele, o espaço não é só um pano de fundo das histórias, mas um elemento que molda todas as experiências, oportunidades e a percepção de cada pessoa do que é o mundo.
E, nesse mundo, o território da campineira Adriana Lopes – hoje professora – é o Jardim São Marcos, bairro que ainda sofre com a vulnerabilidade social, mas aos poucos se transforma em cenário de luta e resistência.
“Onde era lama eu brincava, hoje é grama. Eu esperei quarenta e poucos anos por isso.”
Realidade, inclusive, retratada em dados: uma pesquisa feita pela Quaest, a pedido da Fundação Feac, apontou que 65% dos moradores reconhecem que há desigualdade social em Campinas. No quesito moradia, 8 em cada 10 campineiros consideram a cidade cara para se viver, sendo o preço dos imóveis e a falta de apoio do governo os principais problemas. 82% responderam que os bairros têm estruturas bem diferentes.
Guilherme Russo, diretor de pesquisa da Quaest, aponta que o levantamento é fundamental para entender essas diferenças.
“Quando a gente fala em números de Campinas, a gente geralmente fala da média ou o resultado acumulado, mas Campinas tem várias etapas, é um mosaico. A gente tem regiões muito ricas, região do Cambuí, do Taquaral, indo para Sousas, é uma cidade muito desenvolvida, com serviços de altíssimo nível, qualidade, as ruas… Mas a gente tem a parte mais sul, perto do aeroporto, onde a cidade já um lugar muito mais pobre. Os serviços não chegam, o saneamento também não chega, você tem uma diversidade de um lugar muito mais pobre. Isso é fundamental para entender uma cidade tão complexa e que está crescendo como Campinas.”

Os dados foram coletados justamente para ajudar a orientar políticas públicas e projetos sociais voltados para reduzir a desigualdade na metrópole. É uma forma de jogar em evidência o que precisa ser visto, como detalha o gerente de desenvolvimento territorial da Feac, Rafael Moya.
“Um olhar para o território. A partir disso, o que a gente precisa? A gente precisa entender a cidade que a gente se insere, quais são os anseios da comunidade e, a partir dali, pensar caminhos para quebrar esses ciclos de vulnerabilidade social. Campinas, assim como toda grande cidade brasileira tem. A gente tem que olhar e entender para transformar.”
Em 2023, o processo de regularização fundiária para centenas de famílias do São Marcos teve início. Mas foi só no ano passado que esses moradores receberam o título de posse dos terrenos, quase 60 anos depois. Enquanto isso não acontecia, a comunidade ainda esperava pelo acesso a serviços básicos, como abastecimento de água potável, energia elétrica, coleta de lixo e até rede de esgoto.
Adriana relembra os momentos da infância em que brincava na beira de um córrego, não só em imagens, mas também do cheiro. Desde que teve acesso ao conhecimento sabia que aquele seria o caminho possível da mudança.

“Ninguém cria algo sem a necessidade. Toda boa invenção foi criada através da necessidade. Eu não sabia que quando eu ganhasse o conhecimento que eu ia poder fazer uma mudança. Quando eu comecei a estudar, eu comecei a ver isso.”
Essas vivências na comunidade fizeram com que ela se tornasse um fio condutor de mudanças no bairro. A jovem, que saiu da periferia, conseguiu acessar o ensino público na Unicamp e hoje é professora de física e química na rede estadual, ainda sabia que podia mais.
Há cerca de quatro anos, Adriana criou o coletivo Saber em Arte, que ensina corte e costura e empreendedorismo para as mulheres que moram no bairro, muitas delas que ainda convivem com a vulnerabilidade.
“Fundamos o coletivo, foi na intenção de como que eu posso mudar a vida das mulheres dentro da minha comunidade? Onde eu nasci e cresci, onde eu vi tantas dificuldades, como que eu posso fazer para que elas possam ter uma vida mais leve?”
“A gente pensava, como que a gente vai fazer? A gente não tem dinheiro, não tinha nada. A gente correu atrás, conseguimos uma parceria, contratamos duas professoras. Falar para você, é fácil tocar um projeto? Não. É fácil lidar com as pessoas? Não, não é fácil. Quando você acredita que você pode, pode ajudar outro, as coisas ficam mais leves.”
Mas, como linha e agulha são capazes de formar não só novas roupas, mas novas histórias e perspectivas de vida? O projeto é voltado para as mulheres que buscam uma nova possibilidade de atuação profissional, autonomia para criar as próprias peças ou ainda dar os primeiros passos em uma carreira empreendedora.
“Falei assim, mãe, quero um vestido longo, que era cheio de botão na frente, estava usando na época, eu tinha 14 anos. Ela fez aquele dia a faxina, comprou um tênis para mim. No sábado meu vestido estava pronto. Ela foi, fez o vestido para mim, no sábado eu estava numa festa, nossa, eu me sentia radiante, parecia na noite aquele sol brilhando, sabe? Eu olhei, falei assim, gente, eu estou com o vestido que eu quero. Então, eu nunca aprendi a costurar.”
A iniciativa tem apoio de diferentes frentes para que aconteça, desde uma ONG estadunidense, a Mitra Pess, até a Secretaria Municipal de Trabalho e Renda e a Fundação Feac. Ao longo dos anos, já foram mais de 150 mulheres impactadas, que tiveram acesso gratuito a uma nova área de formação e alternativa de trabalho.

Uma dessas mulheres é a empreendedora Ana Cristina Miguel. A partir do curso, ela começou a confeccionar bolsas e, desde então, tem a própria renda com os produtos que vende na feira. Para ela, foi fácil escolher trocar a vida de dona de casa para a rotina atrás da máquina de costura.
“No começo eu não sabia mexer na máquina, não sabia nada. Aí a Vanilda teve paciência, foi devagarinho, ensinou, aí eu comecei a pegar gosto, comecei a procurar, a pesquisar mais. Um dia ela falou, vamos fazer umas bolsas, aí eu comecei a gostar mais, comecei a me interessar mais, pesquisar e fazer.
E aí estou até hoje, vai fazer dois anos esse ano. Surgiu a oportunidade de entrar na feira, porque até então eu fazia assim, vendia para uma amiga, família, fazia só assim.

Para quem sonha, o traçado de linha e agulha ajuda a costurar os caminhos do futuro.
“O projeto, para as pessoas que se empenham, ele muda a vida da pessoa. Se a pessoa se empenhar, se a pessoa quiser mesmo, ela tem a vida dela mudada. Eu falo isso por mim. Eu quero, sabe, sempre estar aprendendo, mudando, crescendo, para poder, quem sabe, chegar a ter uma loja de bolsas artesanal”, contou Ana.
“A gente só vai deixar no mundo aquilo que você fez, só. O que eu fiz, o que eu pude fazer, nem que foi pouco, mas de grão em grão de areia, a praia enche”, completou Adriana.




