Entrevista: Marco Guarizzo
Texto: Henrique Bueno e Leandro Las Casas
Quando se fala em atletas brasileiros bem sucedidos, logo vem à cabeça nomes de jogadores de futebol renomados, de pilotos de Fórmula 1 vencedores e de alguns campeões olímpicos. O fato é que existem brasileiros que fogem do conhecimento de muitas pessoas, mas que elevam o esporte e se tornam referência para a prática no mundo todo. Um desses casos diz respeito a Rodrigo Raineri, um dos alpinistas mais experientes e técnicos do Brasil. Escalador completo possui vasta experiência em rocha, gelo e alta montanha. Em 2016 tornou-se o único brasileiro a guiar expedições aos sete cumes, projeto que abrange escalar as mais altas montanhas de cada continente. Foi ainda o primeiro brasileiro a escalar três vezes com sucesso o Monte Everest, a montanha mais alta do planeta a 8.848 metros. Formou com Vitor Negrete a única dupla brasileira a escalar a temida Face Sul do Aconcágua, uma das escaladas mais difíceis do mundo, sendo um marco no montanhismo brasileiro. Nesta entrevista ao jornalista Marco Guarizzo, Rodrigo Raineri revisita a carreira, contando a experiência de estar nos pontos mais altos do mundo, as aventuras, dificuldade e dramas vividos em cada expedição, além do sucesso como empresário.
Pico das Agulhas Negras e treinamento pesado
Rodrigo Raineri é nascido em Ibitinga, no interior paulista, mas sua vida começou a mudar quando veio para Campinas estudar engenharia de computação na Unicamp, em 1988. Ele deixou uma vida pacata no sítio para ganhar o mundo. E o montanhismo apareceu naturalmente na vida do atleta. “Antes de vir para Campinas, eu estudei em Rio Claro. Lá eu tinha um professor que levava os alunos para conhecer aquela região de cachoeiras em Botucatu, em Brotas, Torrinha”, relembra. Fazendo colegial em Ribeirão Preto, ele teve oportunidade de visitar as cavernas no Vale do Ribeira. “Aquilo mudou a minha vida”, resume. A primeira escalada aconteceu no dia 07 de setembro de 1988. Já aluno da Unicamp, ele aproveitou o feriado e foi com um grupo de amigos para o Parque Nacional do Itatiaia, na Serra da Mantiqueira. “Fomos escalar o Pico das Agulhas Negras. Aí o negócio me pegou. Eu adorei e nunca mais parei”.
A dificuldade de comunicação e a falta de equipamentos foi o primeiro obstáculo no início da carreira. “Não havia internet e os equipamentos de segurança não eram comercializados no Brasil. A gente tinha que descobrir quem eram as pessoas que sabiam de alguma coisa ou que poderiam trazer coisas para gente do exterior”. Raineri teve persistência no início. Ele foi em buscar de cursos com especialistas em montanhismo, para se especializar. Na época, o esporte era uma novidade e pouco praticado no Brasil. Mas graças a sua própria dedicação, hoje os novos adeptos encontram muito mais facilidade. “Quem quer começar aqui em Campinas, tem o Grupo de Escaladas da Unicamp, que eu ajudei fundar, e está aberto. Tem vários clubes e empresas boas espalhadas pelo Brasil”, disse. Porém, o alpinista alerta: “Tem muita gente que não está preparada ministrando curso por aí. O interessado deve sempre procurar saber sobre quem oferecesse esse tipo de programa”.
Quem resolver aderir ao montanhismo deve ter uma coisa em mente: é preciso (e muito) trabalhar a parte física. “Eu diria que mais do que uma forma atlética, é um estilo de vida. Praticar atividade física, ter uma qualidade de sono boa”, afirma. E essa consciência só despertou em Rodrigo Raineri após dar os primeiros passos mais ousados na carreira. “Eu nunca tinha me empenhado em treinamento. Só fui pensar nisso quando fui para o Aconcágua. Aí parei e percebi que eu precisava treinar”, revela.
“O treinamento gera resultado. Não só físico, mas também técnico e mental”.
Porém, é preciso ter a cabeça no lugar e respeitar os limites de seu corpo. “Você não pode ultrapassar os seus limites. Senão o seu esforço deixa de dar resultado e começam a surgir as lesões”, alerta. Depois vem a parte técnica, que só aparece com a prática da atividade.
No alto da montanha e o sucesso
O planejamento para o montanhista pode significar algo entre a vida e a morte. Por isso, cada passo dado rumo ao objetivo deve sempre ser bem pensado e preparado. “São vários desafios para subir uma montanha como o Everest, por exemplo. São dois, três meses. Você tem que abastecer bem o acampamento base e os superiores. Você tem que estar tranquilo para tomar boas decisões em situação de estresse”, revela.
A alimentação é um problema. Quando partiu para o Everest em 2005, Rodrigo Raineri optou pelo lado norte da montanha. E aí a dificuldade para levar comida foi muito grande. “A gente tem que subir com toda comida, já que é muito difícil reabastecer. Então com um mês de expedição, acabam suas frutas e seus legumes. E aí sobram apenas os enlatados”, diz. E a altitude traz outra complicação. “Com a falta de oxigênio, o seu metabolismo diminui. Então o seu corpo fica mais fraco, o seu raciocínio fica mais lento e a digestão mais demorada. Então se você comer alguma comida indigesta prejudica demais o seu desempenho”.
“A partir de dois metros de altura, você pode cair, voltar para o chão e ter uma consequência grave. Uma expedição de sucesso é aquela que você volta para casa”
Mesmo quando o cume não é atingido, a expedição pode ser considerada um sucesso. “Na última vez que fui ao Everest, eu precisei ser resgatado duas vezes de helicóptero”, conta aos risos. “Eu dou risada, porque hoje estou aqui, está tudo bem. Mesmo com os problemas que tive, podemos dizer que a expedição foi um sucesso”, acredita.
Medos e perdas
Para um montanhista persistente, o objetivo é atingir os pontos mais altos do mundo. Aí surgiu a ideia dos sete cumes. “A gente queria chegar o topo das montanhas mais altas de cada continente. É claro que supondo que o mundo tenha sete continentes”. O Everest, a montanha mais alta do mundo que fica na Ásia, foi alvo de seis expedições. Em três delas, Raineri chegou ao topo. “Na minha primeira expedição, eu fiquei a 50 metros do cume. Em outra, a 150 metros”. Na América do Norte, a montanha mais alta é a Denali, localizada no Alaska .Na América do Sul, o Aconcágua é ponto mais alto. O Kilimanjaro é o pico mais alto da África. “É alucinante. Você está no meio da savana, num lugar quente e no meio do nada tem uma montanha de neve”, diz. Na Europa a escalada foi no Monte Elbrus, na Rússia e na Oceania a Pirâmide Carstenz, na Indonésia. Para fechar o pacote, tem ainda o Maciço Vinson. “Eu sou o único brasileiro a guiar os sete cumes”.
Quem vê o alpinista contando seus momentos de glória, não tem a mínima ideia da dificuldade para alcançar o objetivo. A altitude, o estresse físico mental e o frio extremo são fatores perigosos, que testam o limite do atleta. “Para mim, o problema mesmo é a altitude, a falta de oxigênio e o frio. Nossa! A sinusite, as vias aéreas, o catarro congela e engrossa. Ataca a rinite, a sinusite. É uma luta”, explica.
Em situações tão extremas, as tragédias acabam acontecendo. Seja com conhecidos ou com um grande amigo. “Eu já, infelizmente, convivi com algumas pessoas que perderam a vida em montanha, junto comigo ou em outra expedição”, diz. O mais duro golpe foi em 2006, quando o amigo Vítor Negrete morreu numa expedição que faziam juntos ao Everest. Naquele momento, tudo que movia Rodrigo Raineri passou a ser questionado por ele próprio. E aí surgiu o medo.
“O medo é saudável. É bom ter medo. Quem tem um pouco de medo acaba se preservando mais”
A dor da perda do amigo ainda é lembrada com muita tristeza pelo alpinista. “É como você reunir os amigos para passar o réveillon na praia. Na hora de descer a serra, eles batem o carro e um deles morre. É uma coisa extremamente triste, quando você está se preparando para fazer algo que é extremamente gratificante”, resume.
Turismo de risco
Depois de anos pulando literalmente de montanha em montanha, Rodrigo Raineri já começa a pensar em desacelerar. Durante sua trajetória, ele criou várias empresas, deu palestras e se dedicou ao mundo dos negócios. “Eu adoro o mundo corporativo. Agora estou com uma construtora e uma startup de tecnologia”, diz. Ele se julga preparado para novos desafios, já que a habilidade e a experiência vêm com o tempo. “Eu faço palestras sobre segurança do trabalho. Eu digo sempre que não adianta nada o cara usar todos os equipamentos de segurança, se ele não sabe o que fazer ali. Não adianta um cara usar um capacete em uma construção e um saco de cimento cair na sua cabeça”, diz.
Em 2019, o alpinista brasileiro estava mais uma vez no Everest, comandando mais uma expedição. “Em princípio, acho que esses foram meus últimos clientes. É muita responsabilidade levar as pessoas para a montanha. Exige muito também da parte mental, da parte técnica. Talvez uma ou outra viagem, levando amigos. Quem sabe?”, questiona. Após a revelação sobre o fim das expedições guiadas, Raineri é categórico ao responder se vai parar de subir montanhas. “De jeito nenhum. Uma coisa é você escalar em dupla, como eu fazia com o Vítor. Outra coisa é você escalar como guia de montanha”, explica.
A prática de montanhismo pode ser feita por qualquer pessoa. “Não há restrições, há limitações. Existem níveis de escaladas, das mais simples às mais perigosas. A pessoa conhecendo seu limite pode desfrutar bem do esporte”, afirma. São trajetórias de atletas como Rodrigo Raineri que elevam o esporte. Hoje o montanhismo tem público cativo e diversas empresas especializadas em guiar expedições pipocaram pelo mundo. E uma imagem de maio de 2019 chocou a categoria. Uma imensa fila de pessoas que estavam a poucos metros do cume do Everest.
A prática doméstica do esporte é relativamente barata e bem acessível. Mas para quem almeja as grandes expedições tem que pagar caro. “Uma expedição no Vinson, na Antártida, custa a partir de U$ 45 mil. No Everest, esse valor sobe para U$ 65 mil”, diz. E esse turismo de risco preocupa Raineri. “Para mim, a popularização do esporte é ótima. O problema é quando você começa colocar pessoas com pouca experiência em lugares que deveria só ter gente com mais experiência”, revela.
“Essa foto foi um instante. O pessoal chega a exagerar. O Everest é a montanha mais famosa do mundo. É normal que as pessoas queiram ir até lá”
De todo modo, a orientação do mais vitorioso alpinista brasileiro é sempre buscar pessoas e guias comprometidos com a segurança e curtir o esporte sem riscos.